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O incrível Steve Ditko

Em 1950, o jovem desenhista Steve Ditko matriculou-se em um curso ministrado por Jerry Robinson, cocriador de personagens como Coringa e Robin. Após ter servido nas Forças Armadas americanas em solo germânico, onde produziu quadrinhos para o jornal do Exército, o rapaz nascido na pacata Johnstown teve um vislumbre de seu futuro ao assistir, no curso de Robinson, à palestra de um tal Stan Lee. Juntos eles conceberiam, entre outros personagens, o Homem-Aranha e o Doutor Estranho.

Por meio de um resgate histórico de cerca de um ano com entrevistas e consultas em acervo, o jornalista Roberto Guedes reconstituiu a trajetória conturbada do artista em O Incrível Steve Ditko (Noir). A biografia prioriza sua atividade artística em detrimento da vida pessoal, sem fornecer muitos detalhes da intimidade do quadrinista. “Ele era uma pessoa reclusa, que quase não dava entrevistas. Utilizei no livro todas as que ele concedeu nos anos 1960, artigos que ele escrevia, tudo o que eu consegui encontrar”, explica Guedes em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

O início da carreira de Ditko (1927-2018) coincidiu com uma grave crise desencadeada pelo livro Seduction of the Innocent, em que o psicanalista Fredric Wertham sugeria uma correlação entre consumo de HQs e delinquência juvenil. As editoras passaram a se autocensurar com a criação do Comics Code Authority, que restringia o conteúdo veiculado nos quadrinhos. Nesse cenário, Ditko começou desenhando histórias de terror, suspense e amor para revistas de pouca expressão. Em 1955, lembrou-se da palestra de Stan Lee e bateu às portas da Atlas Comics, como a Marvel se chamava à época.

Demorou para que ele começasse a produzir narrativas de super-heróis, gênero em baixa desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Sua primeira parceria com Lee foi um faroeste, Os Homens Maus (1956). Os heróis só voltaram a fazer sucesso em 1961, com o Quarteto Fantástico, de Stan Lee e Jack Kirby. No ano seguinte, quando Lee pensou no Homem-Aranha, Kirby foi sua primeira opção para ilustrá-lo. O resultado, no entanto, não foi satisfatório: ele era muito semelhante a uma criação antiga de Kirby, o Capitão América, imponente demais para a proposta de um jovem pouco sociável como havia de ser Peter Parker. A alternativa foi oferecê-lo a alguém mais novo, e Steve Ditko foi fundamental não só na concepção visual, mas para a construção da personalidade do herói, descrito por Guedes como um autorretrato de Ditko: um rapaz tímido, magro, recluso e esquisitão que sofria bullying. A identificação do público nerd com Peter Parker foi instantânea e o fez atingir um nível de popularidade comparável apenas ao de Superman e Batman.

Objetivista. À medida que Ditko se consolidava no panteão das HQs, via a Marvel lucrar à custa de seu esforço e se embrenhava cada vez mais no Objetivismo, filosofia pregada por Ayn Rand, autora de A Revolta de Atlas. Ditko se identificava com uma frase do personagem randiano Howard Roark, de A Nascente: “O criador origina. O parasita apropria-se”. Era assim que ele via o dono da empresa, Martin Goodman, e até seu parceiro Stan Lee.

Ditko passou a imbuir seus valores nos roteiros do Homem-Aranha e do Doutor Estranho, e as diferenças criativas e ideológicas com Lee se aprofundaram ao ponto de eles não se falarem mais. Em 1966, sem nenhum motivo aparente, o quadrinista se desligou da Marvel. A antepenúltima história do Homem-Aranha criada por ele introduziu o vilão Saqueador, que o biógrafo nota ser um “termo muito usado em A Revolta de Atlas, em referência aos que se aproveitam do trabalho dos outros.” Na última narrativa, o herói desdenhou de estudantes universitários que promoviam uma manifestação, algo que Ayn Rand criticava.

“Ele demonstrava em sua personalidade ser uma pessoa propensa a esse tipo de ideologia, e começou a colocar nas histórias, no começo de modo tímido, não tão incisivo, mas depois descaradamente, principalmente quando começou a trabalhar com a Charlton Comics”, disse Guedes. Ao sair da Marvel, seus personagens passariam a incorporar cada vez mais os princípios objetivistas. Era o caso de Mr. A e Questão, dois vigilantes impiedosos que não hesitavam em matar os criminosos – e inspiraram Alan Morre a criar o perturbado Rorschach em Watchmen.

Por conta de suas opiniões, Ditko, que já era de difícil trato, foi se afastando dos conhecidos, recusava trabalhos que não condiziam com sua visão e acabou limitado ao circuito de fanzines e publicações independentes. “Ditko se radicalizou tanto que as pessoas não conseguiam se comunicar com ele se não comungassem de sua filosofia”, analisa Guedes. “Ele dizia não se importar com fama e dinheiro, mas as brigas eram pelo pouco reconhecimento e porque as editoras não pagavam o que era devido. Ele era uma pessoa muito contraditória”, acrescenta.

A leitura da biografia suscita uma curiosidade: o que Ditko acharia do atual sucesso cinematográfico de heróis que ajudou a criar? “Ele diria que não acompanhou e que não tinha o menor interesse nisso. Ele recebia correspondências de fãs pedindo sua opinião sobre o rumo de seus antigos personagens e sempre dizia que o trabalho mais importante para ele era o que estava fazendo no momento.”

O INCRÍVEL STEVE DITKO
Autor: Roberto Guedes
Editora: Noir (264 págs., R$ 54,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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