Ponto de travessia do bando de Riobaldo de Minas Gerais para Goiás, a cidade histórica mineira de Paracatu vive um conflito sobre a exploração industrial de ouro numa mina a menos de 300 metros do perímetro urbano.
Nos anos 1980, a empresa canadense Rio Paracatu Mineração, rebatizada de Kinross, obteve do governo a concessão do Morro do Ouro, onde pequenos garimpeiros tiravam ouro em bateias. A mineradora cercou a área, pôs vigias na mina e começou a comprar lotes e sítios de antigos moradores.
No tempo de Guimarães Rosa, o Morro do Ouro tinha uma série de cachoeiras e córregos. Aos poucos, a mineradora foi rebaixando o morro e formou uma cratera, que chama a atenção de quem percorre a BR-040, entre Belo Horizonte e Brasília, bem ao lado do casario histórico de Paracatu, antiga Vila de Paracatu-do-Príncipe, cidade de 90 mil moradores.
Parte das igrejas, vendas e casas coloniais de Paracatu que existiam no tempo de Grande Sertão: Veredas ainda está de pé. No livro, o jagunço Zé Bebelo, que chefiou o bando de Diadorim e Riobaldo, incentiva seus homens a sonhar em passar por cidades importantes e fala de Paracatu em tom grandiloquente. “Ainda quero passar, a cavalos, levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz falta é uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais… (…) Eh, vamos no Paracatú-do-Príncipe!…”, afirma Zé Bebelo.
Em Paracatu, temores sobre chegada de fiscais do governo para inspecionar garimpos ou bandos de jagunços saqueando comércio, casas e fazendas ficaram para trás. Hoje, a preocupação é com o nível, no ar e nas águas, de arsênio, elemento químico que tem substituído o mercúrio nas explorações de ouro. A Kinross diz que não usa arsênio na cidade. Mas a substância é encontrada em abundância nas rochas explodidas pela mineradora.
O conflito se acirrou em 2015, quando a barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana, se rompeu. Isso porque a Kinross construiu duas barragens, Santo Antônio e Eustáquio, para jogar efluentes industriais. Diferentemente da barragem de Mariana que ficava em área rural, as duas barragens de rejeitos de Paracatu são vizinhas de bairros residenciais.
Com 1,2 mil empregos diretos, a mineradora divide a cidade. Moradores com parentes empregados na mina são acusados de ameaçar quem critica a empresa. O dono de oficina Neuton José da Silva, de 48 anos, diz que são comuns bilhetes deixados debaixo de portas e telefonemas anônimos com ameaças. “Aqui você não pode abrir a boca para comentar esse caso.”
Quando a barragem de Mariana se rompeu, um grupo do Ministério Público de Minas disse em audiência pública à população que não havia risco de acidente. Pela avaliação do Cadastro Nacional de Barragens de Minérios, relatório do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), as barragens da Kinross estão na categoria “Baixo Risco”. Essa classificação foi a mesma dada à barragem de Mariana. Tanto as barragens de Paracatu quanto a da Samarco foram classificadas ainda na categoria “Alto Dano Potencial Associado”, referência ao que pode ocorrer em caso de rompimento. O Estado procurou o DNPM, mas o órgão não se posicionou.
O chefe do Departamento de Meio Ambiente da Kinross em Paracatu afirma que, logo após o acidente de Mariana, a empresa fez mais de 15 reuniões com comunidade e autoridades para discutir a questão. Ele ressalta que a barragem de Santo Antônio não recebe novos rejeitos, embora continue ligada à linha de produção, por meio da água que circula entre o depósito e a mina. A empresa está num processo de fechamento da barragem. “A gente fica tranquilo hoje para dizer que tudo que pode ser feito em segurança de barragem está sendo feito.”
Morador de Paracatu, o professor e geólogo José Márcio Santos afirma que há um nível de arsênio acima do recomendado em águas subterrâneas, rios e córregos. Ele apresenta análise da urina de 37 moradores – 29 adultos e 8 crianças – das margens do Ribeirão Santa Rita, feita entre abril e julho de 2016. Segundo ele, 70% dos exames mostraram concentração elevada de arsênio e a amostra indicou presença de 18 microgramas de arsênio em cada grama de creatina, nível acima do tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 10 microgramas. Em alguns casos, a concentração chegou a mais de 200% do nível aceitável, afirma. “Essa população deveria receber acompanhamento especial.” Ele observa que, em seu estado natural, o arsênio não traz riscos, mas num processo industrial como o da exploração de ouro se torna veneno.
A Kinross apresentou vários estudos em sua defesa. Marcos do Amaral Morais, chefe do Departamento de Meio Ambiente, diz que a empresa minimiza impactos na cidade com barreira acústica para evitar barulho de explosões, monitoramento de ruídos e cinco estações que analisam nível da poeira, de hora em hora. Ele relata que uma parte do efluente industrial da mina, o resíduo não perigoso, é jogada nas barragens e o arsênio vai para tanques específicos e selados, com proteção de argila, que funciona como barreira química. A empresa ainda reutiliza a água, evitando que seja jogada em rios e córregos. “Estudos indicam que a exposição de arsênio em Paracatu é muito baixa. Você não encontra arsênio na água consumida na cidade”, afirma.
Dúvidas. A única pesquisa oficial de grande porte sobre a qualidade da água e do ar em Paracatu começou a ser feita em 2010. O estudo coordenado por Zuleika Castilhos, pesquisadora do Centro Tecnológico de Pesquisa Mineral (Cetem), não diminuiu as dúvidas. Em nota, o órgão do Ministério de Ciência e Tecnologia informou que o estudo indicou que mais de 95% das mil pessoas examinadas apresentaram baixos teores de arsênio na urina. Embora tenha ressaltado que “águas de abastecimento doméstico de Paracatu também mostraram baixos teores de arsênio”, o texto registrou que “teores de arsênio em águas superficiais e solos se mostraram, via de regra, acima do estipulado pela legislação brasileira para consumo humano”. O texto ainda ressalta que “empregados da mineradora, que são também moradores do município, não participaram da pesquisa, embora tenham sido convidados”. “As razões para a não participação são incertas, mas se pode afirmar que esse grupo é mais vulnerável à exposição ao arsênio do que a população em geral.”
Relatório feito por um representante do Ministério Público informou que a pesquisa teve problemas. Exames tiveram de ser refeitos após falhas no equipamento do Instituto Evandro Chagas. Ainda segundo o documento, novos exames mostraram que cinco moradores apresentaram nível de arsênio acima de 100 ug/L, considerado elevado, e outros dez acima de 50 ug/L, índice que indica alerta.
A gerente de Comunicação e Relacionamento com a Comunidade da Kinross, Ana Cunha, afirma que a empresa tem preocupação em ser “bom vizinho”. “A gente é parte de Paracatu. Somos responsáveis por 15% a 20% dos empregos da cidade.” O Ministério Público de Minas informou que o procurador que cuidava do município foi transferido.
Ruralista cobra diálogo sobre divisão da água
O ruralista Adison Ribeiro, do Sindicato dos Produtores Rurais de Paracatu, avalia que o uso da água na exploração de ouro no município precisa ser negociado. Ele diz que proprietários rurais que fazem captação no Ribeirão São Pedro tiveram redução no limite de água para irrigar lavouras por decisão da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad).
“A água precisa ser dividida de maneira a contemplar vários públicos. A última outorga priorizou a mineradora em detrimento dos agricultores. Nós produzimos alimentos, né, chefe”, ressalta.
A Kinross diz que seus processos seguem o que determina a legislação. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.