Uma criança indígena de apenas três anos deve conhecer sua aldeia, a Terra Indígena Andirá Marau, no Amazonas, pela primeira vez em breve. Isso porque o Ministério Público Federal (MPF) em Volta Redonda, no sul fluminense, moveu uma ação civil pública para que a menina, que está sob a guarda de um casal da cidade, seja devolvida para a mãe biológica, que pertence ao povo sateré-mawé.
De acordo com os procuradores da República Julio José Araujo Junior e Marcela Harumi Takahashi Pereira Biagioli, autores da ação, a criança foi afastada da mãe poucos dias depois do parto. A intermediação, consta no processo, teria sido feita pelas ONGs Jovens Com Uma Missão (Jocum) e Atini – Voz pela Vida que capacitam jovens missionários para atuarem junto aos povos indígenas, alegando “o objetivo de erradicar o infanticídio nas comunidades indígenas”.
O processo, que corre em segredo de Justiça, relata que a mãe, uma adolescente, teria sido “subtraída” da aldeia pelas ONGs que “invocaram motivos humanitários, a pretexto de protegê-la”. A adolescente teria sido “submetida a uma peregrinação pelo País” até dar à luz. Quatro dias depois, a criança teria sido entregue ao casal de classe média de Volta Redonda. “Sob pretexto de uma atuação supostamente humanitária, os envolvidos promoveram uma desestruturação étnica de determinados povos e a violação da dignidade humana de indígenas, retirando-os de suas terras e do convívio com o seu grupo”, relatam os procuradores.
Na avaliação do MPF, “a história da mãe indígena e de sua filha foi distorcida até parecer uma doação comum de uma criança vulnerável, com mãe incapaz”, quando na verdade, seria “mais um exemplo da atuação sistemática desses grupos missionários contra os povos indígenas e seus modos de vida, com o fim de fazer valer unilateralmente a concepção daqueles sobre a cultura indígena”. Para os procuradores, além da violação de direitos da mãe e da filha, houve “violação de direitos do povo sateré-mawé”.
Notificação
As ONGs afirmam que receberam a notificação sobre o processo há cerca de dez dias e elaboram as defesas. No entanto, estão impedidas de falar sobre o caso por causa do sigilo judicial. Ligada a instituição internacional Youth With A Mission, a Jocum está no Brasil desde 1975. Já a Atini foi criada em 2006 por missionários da Jocum para atuarem junto aos indígenas.
Sem citar diretamente a ação movida pelo MPF, a advogada da Atini, Maíra Barreto, explicou que as instituições “combatem o infanticídio e outras práticas culturais nocivas que atentam contra a vida da criança”. “Não vamos às aldeias, mas os pais e mães nos procuram para salvar a vida das crianças. A Atini sempre defendeu a cultura indígena como um valor do qual não podemos abrir mão, mas se existem elementos que são nocivos e violam direitos humanos universais, principalmente das crianças, eles devem ser discutidos”. Na decisão, os procuradores determinam que a criança seja devolvida à mãe na aldeia no Amazonas “após a elaboração de laudo antropológico” e que a guarda provisória concedida ao casal seja suspensa. A Fundação Nacional do Índio (Funai) deve acompanhar o desenvolvimento da criança e fornecer apoio psicológico e antropológico para assegurar o relacionamento da menina com a família.
O MPF também requer que seja declarada a responsabilidade civil da Jocum, da Atini e do casal. As três partes deverão pedir desculpas públicas ao povo sateré-mawé e pagar uma indenização no valor total de R$ 500 mil. Habitantes da divisa dos Estados do Amazonas e do Pará, os sateré-mawé são considerados os inventores da cultura do guaraná, já que conseguiram dominar a trepadeira silvestre e desenvolveram o processo de beneficiamento da planta. Cultivado pelos homens, o fruto é o principal item da economia dessa etnia que tem aproximadamente 11 mil pessoas, segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As mulheres só podem participar da atividade até a primeira menstruação, quando passam a ser consideradas esposas e mães em potencial.