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Entre uma vida imóvel e o adeus, a difícil escolha de Amadeo

Em 2008, o diretor francês Côme de Bellescize montou Os Filhos do Sol, de Gorki, drama ambientado na virada do século. Aos 28 anos, já estreava como dramaturgo. E ali buscava, em suas próprias palavras, "falar da atualidade, do mundo no qual vivia. Era o texto de um artista que estava se encontrando". Assim nasceu Amadeo, peça elogiada por artistas como Ariane Mnouchkine, do Théâtre du Soleil.

Dirigido por Nelson Baskerville, o espetáculo, em cartaz no Tucarena, tem seis atores que se distribuem em oito papéis para contar a história do rapaz de 20 anos que sofre um grave acidente de carro e fica paralisado – na verdade, fica preso em um corpo sem nenhuma autonomia, impossibilitado de se comunicar. O texto, baseado em um caso real, acompanha Amadeo, sua mãe, amigos e namorada na passagem de uma vida vibrante e cheia de sonhos para a imobilidade completa em um hospital – e levanta a questão da liberdade de escolha, a mais extrema, diante da morte. O elenco tem César Mello, Chris Couto, Cláudia Missura, Janaína Suaudeau, Thomas Huszar e, no papel-título, Thalles Cabral.

"Busquei uma história que tinha me marcado, o caso de Vincent Humbert: eu tinha mais ou menos a idade dele e o caso apareceu exaustivamente na imprensa, de maneira extremamente polarizada", continua Bellescize, em entrevista ao <b>Estadão</b>. "Cada lado tratava o outro de imbecil ou demônio. E mais: já sentia na sociedade ocidental a violência com os seres mais frágeis, pautando tudo no culto ao corpo, na performance."

<b>REFERÊNCIAS</b>

Apesar das fortes referências em Beckett (o personagem principal tem um duplo chamado Clov, como em Fim de Jogo) e Ionesco, Bellescize garante que não se trata de uma peça de teatro do absurdo, embora a situação em si seja, sim, absurda. "Em Amadeo ou em Como Se Livrar Dele, de Ionesco, os personagens se perguntam como vão se livrar de um corpo no quarto ao lado. Há 40 anos, não se sobreviveria a um acidente como o do meu personagem. Pessoas são salvas hoje pela medicina de forma quase milagrosa – elas sobrevivem, mas depois não se sabe como se livrar delas. É irônico, quase cínico, são perguntas complexas às quais devemos reagir, mas nos sentimos pequenos demais."

A mãe, a namorada, o melhor amigo, o bombeiro que puxou o rapaz das ferragens trafegam nesse paradoxo ético, entre o amor e o luto, a dor e a esperança. Já o alter ego, o duplo imaginário, expressa a consciência, os pensamentos, as pulsões de vida e de morte de Amadeo, de forma lúdica e até violenta por vezes. "Decidi não colocar palavras em um monólogo de Amadeo, mas fazer teatro. Assim é possível acompanhar a vida interior do personagem em situações por vezes quase clownescas. Isso permite ao espectador acompanhar o personagem, sem impor nada."

A montagem no Brasil teve a intermediação de Janaína Suaudeau, que assistiu à peça em Paris há uma década e interpreta agora a namorada de Amadeo. "O que mais me tocou nessa peça foi o tratamento dado a um assunto tão sensível sem tomar partido. O texto nunca cai no pathos, ao contrário, tem cenas engraçadas e lúdicas."

O conceito strindberguiano de "peça-sonho" guia a concepção do diretor Nelson Baskerville. "A plateia é conduzida por meio de imagens oníricas para ser confrontada com questões tão duras", diz. "O teatro é esse véu que se lança sobre uma dura realidade. E insisto na ideia de opção, a ideia brechtiana do teatro épico, de refletir e não apenas reagir." Bellescize ressalta que não há uma "postura moralizadora" na apresentação das opções do rapaz – seguir vivo no estado de imobilidade ou pedir a saída pela eutanásia. "Tento não impor uma visão, mas um questionamento. Quando Amadeo estreou na França, foi interessante ver militantes a favor ou contra me procurando no final do espetáculo e dizendo: Agora eu consegui enxergar o outro lado e é perturbador . Gosto de fazer do teatro um lugar de descoberta de si e dos outros."

A abordagem cênica apresenta um início realista – "são dois espetáculos, antes e depois do acidente", explica Baskerville. "Primeiro, o videogame, a casa do rapaz; em seguida, o hospital. O autor trabalha em dois planos, o real e o imaginário, um pouco como em Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues."

A pergunta colocada, enfim, parece ser a da razão pela qual estamos vivos.
Baskerville encerra trazendo a história de Nietzsche contada – ou imaginada – por Irvin Yalom em Quando Nietzsche Chorou: "No romance, Nietzsche diz que gostava de morar em frente a cemitérios para se lembrar da razão pela qual está vivo". (Colaborou Luciana Medeiros)

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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