A Mangueira fez jus à sua tradição de reverenciar ícones da música popular brasileira na Marquês de Sapucaí e se sagrou campeã do carnaval carioca com o desfile-tributo à Maria Bethânia, intitulada “a menina dos olhos de Oyá”. Foi o 19ª campeonato da Verde-e-Rosa, uma das escolas mais tradicionais do Rio, fundada em 1928, e uma aclamação também do carnavalesco Leandro Vieira, o caçula da avenida – ele tem 31 anos e esta foi sua primeira assinatura solo no Grupo Especial, depois de auxiliar profissionais mais experientes.
A homenagem a Bethânia, que fechou o carnaval na avenida, foi redentora para a Mangueira, que vinha de carnavais menos competitivos desde 2002. Naquele ano, a agremiação conquistou o primeiro lugar com um enredo sobre o Nordeste. Em 2015, terminara em 10º lugar (são 12 escolas); em 2014 e em 2013, em oitavo. Nos anos 2010, a melhor colocação havia sido em 2011, um terceiro lugar, e também uma homenagem, dessa vez ao compositor mangueirense Nelson Cavaquinho (1911-1986).
“O júri achou que a Mangueira merecia ganhar, o povo também, e a Mangueira ganhou. Ainda não parei para dimensionar o tamanho disso. Era uma comunidade que há algum tempo não acreditava que isso era possível, e agora vê que é. Eu agradeço à Mangueira por ter confiado num jovem como eu”, comemorou o carnavalesco, que é artista plástico, com diploma da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele é egresso da Caprichosos de Pilares, escola da Série A, e já trabalhou com nomes como Cahê Rodrigues, Mauro Quintaes e Fábio Ricardo.
Foi dele a ideia de homenagear Bethânia, de quem é grande fã. Em dificuldades financeiras, a escola chegou a cogitar um enredo patrocinado, com menor apelo emocional, porém com folga financeira, mas preferiu apostar em sua força ao fazer homenagens. Em 1984, ganhou com enredo sobre Braguinha (1907-2006); em 1986, com Dorival Caymmi (1914-2008); em 1987, com Carlos Drummond de Andrade (1902-1987); em 1998, com Chico Buarque. Bethânia já havia sido homenageda em 1994, com os Doces Bárbaros (o irmão Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa), mas o desfile teve problemas técnicos e a colocação foi péssima: 11º lugar.
“Nós trouxemos o Mangueira de volta para o coração dos mangueirenses. Foi uma conquista suada que juntou a emoção do enredo da Maria Bethânia, que foi fundamental para a nossa escola, com a criatividade e competência do carnavalesco, que ninguém conhecia. O público não arredou o pé e ficou em peso na Sapucaí, mesmo a Mangueira sendo a última escola”, disse o presidente da escola, Chiquinho da Mangueira. “Eu me sinto dando sequência ao grande legado que Luizito (puxador que morreu em 2015) me deu e que ele tinha recebido de Jamelão. O Leandro (Vieira) foi a grande revelação. As pessoas diziam que não ia dar certo, que ele era de uma escola de segundo grupo, mas ele provou o seu talento”, destacou o puxador Ciganerey.
A disputa da Verde-e-rosa com a Unidos da Tijuca e a Portela e o Salgueiro perdurou até os últimos quesitos. A vitória saiu apenas no último a ser aberto, alegorias e adereços. A Mangueira recebeu apenas notas 10, à exceção de dois 9,9, na comissão de frente (os demais décimos perdidos foram descartados, já que a regra da apuração diz que as menores notas de cada quesito são descartadas).
O desfile emocionou o público, que continuou cantando o refrão do samba – “Quem me chamou… Mangueira/ Chegou a hora, não dá mais pra segurar/ Quem me chamou… Chamou pra sambar/ Não mexe comigo, eu sou a menina de Oyá” – mesmo após o encerramento da apresentação. Foi uma passagem impactante desde a comissão de frente até o último setor, que trouxe Bethânia num carro alegórico sobre o circo, uma paixão da infância.
Vieira prometera um carnaval “com a cara da Mangueira, muito mais original do que luxuoso”. A comissão teve Oyá (Iansã), o orixá de devoção da intérprete baiana, representada por mulheres negras de seios de fora e coreografia impactante. A divindade, louvada como “senhora mãe da tempestade”, estava também no centro de um tripé, abrindo caminho para a escola.
Na sequência, o casal de mestre-sala e porta-bandeira, Raphael Rodrigues e Squel Jorgea, vinham representando Ogã e Iaô. Eles ganharam nota máxima dos quatro jurados. Além do bailado impecável, eles impressionaram pela belíssima fantasia e caracterização – Squel tinha uma peruca de plástico que cobria seu cabelo, dando a impressão de que ela era careca.
O carnavalesco acertadamente escolheu como caminho para o desfile a religiosidade de Bethânia. Os setores traziam referências aos cultos afro-brasileiros. Os 50 anos de carreira, do Teatro Opinião, onde estreou, em 1965, à interpretação de músicas de Chico Buarque, Roberto Carlos e Caetano Veloso, foram lembrados por músicas de sucesso de uma das maiores intérpretes da música brasileira, como “Explode coração”, “Brincar de viver”, “Mel”, “Fera ferida”, citadas no samba, cantando pelos cerca de 4.000 componentes todo o tempo. Eles pareciam ter de volta o orgulho de ser mangueirense, arrefecido pelos carnavais de menos brilho dos anos anteriores.. As fantasias tinham leitura fácil, e a comunicação com a plateia funcionou muito bem.
Logo após a apuração, o irmão Caetano Veloso, que desfilou num carro com outros artistas, como Ana Carolina, Adriana Calcanhotto e Zélia Duncan, fez um vídeo comemorativo em que festejou: “Mangueira é foda, Maria Bethânia é foda! A Mangueira é onde o Rio é mais baiano, então tinha que ganhar com Maria Bethânia”.