Marília Pêra, que morreu no início da manhã deste sábado, 5, poderia ser só mais uma dessas herdeiras de artistas que, fascinada pelo universo frequentado pelos pais, virou atriz.
O caso é que Marília dificilmente escaparia desse destino. Artista completa, capaz de atuar, cantar e dançar com maestria, pisou no palco pela primeira vez aos 4 anos, incentivada pela mãe, Dinorah Marzullo, e pelo pai, Manuel Pêra.
Foi bailarina dedicada a coreografias, sapatilhas e pas-des-deux, dos 14 aos 21 anos. Esteve em musicais e espetáculos de revista, peças, filmes, novelas e seriados. Cantou e cantou bem até o fim – vinha gravando um CD pela Biscoito Fino, com repertório pautado pelo amor.
Ela mesma nos contou sobre o projeto, ainda em setembro, quando o jornal O Estado de S. Paulo a entrevistou sobre a nova temporada de Pé na Cova, que então iria estrear. Na ocasião, Marília fez questão de dizer que estava ótima, que a reclusão de dois anos antes, em função de um tratamento para sanar o desgaste ósseo dos quadris, era algo completamente superado. E que estava cheia de projetos.
“Eu não estou reclusa, muito pelo contrário”, insistiu. Mas o agendamento de uma sessão de fotos pela reportagem demorou a ocorrer, em razão da fragilidade da atriz. Os retratos foram feitos cerca de dez dias depois, no Rio, e apresentavam então a diva de sempre, perfeita, com fragilidade nula nas imagens, como só uma grande atriz faria.
Marília tentou, até o fim, disfarçar a condição física apontada há alguns dias por Hidelgard Angel, que publicou em seu blog que a atriz sofria de câncer – “ela mesma me falou”, informou Angel.
Polêmica como só os gênios podem se dar ao luxo de ser, Marília Pêra fascinou grandes plateias e descontentou alguns colegas de profissão. De temperamento impositivo, fazia valer sua vontade. Um dos episódios que vieram à tona, nesse contexto, foi sua escalação para a minissérie Cinquentinha, de Aguinaldo Silva. Após várias cenas gravadas, desistiu do papel, causando revolta entre os profissionais da Globo e sendo substituída por Betty Lago.
Em 1989, ao tomar partido por Fernando Collor para a presidência da república, foi vítima de agressores que apedrejaram a porta do teatro onde ela se apresentava. Desde então, não mais se manifestou politicamente.
O episódio foi um contraste no seu histórico político, já que no passado, chegou a ser vista como comunista. Foi presa durante a apresentação da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em 1968, e teve a casa invadida pela polícia pouco tempo depois, quando novamente foi presa.
Foi ainda engatinhando como atriz que esteve no mesmo palco de Bibi Ferreira, em Minha Querida Lady (1962). Costumava dizer que passou nos testes porque os diretores procuravam alguém capaz de fazer acrobacias, coisa rara na época.
Em 63, foi Carmen Miranda em O Teu Cabelo Não Nega, biografia de Lamartine Babo, e voltou a encarnar a cantora em outras ocasiões, como no espetáculo A Pequena Notável (1966), dirigido por Ary Fontoura, e A Tribute to Carmen Miranda, no Lincoln Center, em Nova York (1975), dirigido por Nelson Motta, e na única apresentação A Pêra da Carmem, no Canecão, em 1986. Em 2005, fez o musical Marília Pêra canta Carmen Miranda (2005), dirigido por Maurício Sherman.
Em 64, chegou a derrotar Elis Regina em um teste para o musical Como Vencer na Vida sem Fazer Força.
Chegou à TV ainda em 65, em Rosinha do Sobrado, já na Globo e depois, em A Moreninha. Em 1967 fez sua primeira apresentação em um espetáculo musical, A Úlcera de Ouro, de Hélio Bloch.
Em 1969, cativou críticos e públicos como protagonista de Fala Baixo Senão eu Grito, primeira peça da dramaturga Leilah Assumpção. Levou o Molière e o APCA do ano.
Em 75, gravou o LP Feiticeira, pela Som Livre.
Com aulas de ópera no currículo, interpretou Maria Callas na primeira montagem de Masterclass. Disse ao Estado que se identificava com a diva.
Com a mesma competência que a levava a atuar e a cantar tão bem, dirigia com mão firme. Era seu o comando de Marco Nanini e Ney Latorraca em O Mistério de Irma Vap, um hit de bilheteria da história teatral brasileira.
Casou aos 17 com o músico Paulo da Graça Mello, morto num acidente de carro em 1969 e pai de Ricardo Graça Mello, seu primogênito. Paulo Villaça, o segundo marido, foi seu parceiro no palco. Depois veio Nelson Motta, pai das filhas Esperança e Nina.
O grande musical Elas por Elas, para a TV Globo, veio em 92. Em 2008, foi protagonista do longa-metragem, Polaróides Urbanas, de Miguel Falabella, onde interpreta duas irmãs gêmeas.
Miguel Falabella foi seu grande parceiro nos últimos anos. Dele, fez A Vida Alheia e Pé na Cova, série que ainda reserva uma temporada inédita, já gravada, como Darlene.
Contou que o amigo lhe prometera uma série centrada nela, no papel da mulher de um político que comete várias falcatruas.