Variedades

Peça do italiano trata da imigração de africanos pelo Mar Mediterrâneo

O retrato do garotinho sírio que morreu afogado em setembro do ano passado na Turquia incendiou a discussão sobre milhares de pessoas do Oriente Médio e África que tentam chegar à Europa. Parte desse drama ganhou registro pelas mãos do dramaturgo italiano Marco Martinelli, que colheu depoimentos de cinco refugiados africanos recém chegados à Ilha de Lampedusa, região da Sicília, para compor a peça Barulho DÁgua, que estreia nessa sexta, 1º, com versão nacional da Companhia Nova de Teatro.

O texto original, encenado em 2010, é um monólogo, no qual um general ensandecido conta a história desses refugiados. Sua fala é dura e indiferente, ao tratar as pessoas como números. Na versão brasileira, o ator Alexandre Rodrigues (Cidade de Deus) encarna o papel de um refugiado africano. A direção é de Carina Casuscelli. Martinelli é diretor do Teatro Delle, fundado em 1983, e desenvolve o conceito de não escola (nuon-scola), voltado para a formação artística e cidadã de jovens e adolescentes.

Por email, o dramaturgo falou ao jornal O Estado de S. Paulo como a questão migratória na Europa tem provocado suas criações e como ele encara os relatos tão próximos e reais de sua peça.

Como a atual situação dos imigrantes tem afetado a Europa e mais particularmente a Itália? Na Grécia, as pessoas estão espalhadas pelas ruas, sem qualquer expectativa de que o governo grego consiga ajudá-las. Como solucionar essa questão?

É um problema enorme, uma tragédia épica. Não há receitas fáceis, soluções pré-fabricadas. Sou apenas um artista, um dramaturgo, cujo dever é colocar o dedo nas feridas desta sociedade e lembrar a todos (primeiro a mim mesmo) que a “compaixão não violenta” é a única base possível para as nossas ações, é a pedra fundamental para qualquer reconstrução humana da sociedade. Uma observação: nas fronteiras da Síria há cerca de quatro milhões de refugiados que fogem da guerra civil. Como acha que eles chegam na Europa? Se não irmos direto à raiz dos problemas (guerras, ditaduras, as desigualdades monstruosas entre países ricos e pobres), a árvore vai sempre dar os mesmos frutos doentes.

Do que se trata o conceito de non-scuola (não escola). É possível ensinar teatro? É possível aprender teatro?

A não-escola é uma atividade que com a minha Companhia Teatro delle Albe, desenvolvo a cada ano com milhares de adolescentes na Itália e no mundo; mas não é uma escola de teatro, como o próprio nome indica, diz que o “não” negação faz com que eles descubram a força dionisíaca do teatro, o valor do rito de iniciação. Criar, desenvolver cidadãos atentos e apaixonados pelo valor “político” do teatro. Então, se um adolescente entre estes se “contamina” de verdade e quer seguir uma carreira de ator ele entra em outra dimensão: o único caminho será o de uma disciplina férrea diária com muita determinação e alegria para buscar a beleza.

Durante a criação do texto, como se deu as conversas com os cinco refugiados? Como trabalhou com os depoimentos no palco?

Eu pesquei fragmentos da vida e da minha imaginação. Alguns testemunhos ouvi pessoalmente, outros inventei, cruzando dados reais e imaginação. Mas também não o fez assim Melville para criar o seu Moby Dick depois de anos de viagem de caça? Não faz sempre assim a arte, sonhando a realidade e realizando os sonhos? No palco na minha encenação com o meu ator Alessandro Renda e a contribuição conceitual e fundamental de Ermanna Montanari, eu criei uma figura que, embora possa ser revoltante, poderia tornar-se um “contra a sua vontade”, ou seja, um canal que nos permite ouvir as vozes daqueles submersos “mortos afogados”.

Como se dá na peça o relato do africano que vai em direção a Itália? De que maneira o personagem do general retrata a prática do que tem sido feito na Europa?

Eu não queria uma piedade fácil, provocar uma comoção para com essas vítimas. Queria que o general, ao recontar as histórias, fosse um personagem desagradável, a parte “negra” da nossa indiferença, do nosso cinismo, do nosso ver outros seres humanos morrendo e como se tudo isso fosse apenas uma questão de números, figuras, estatísticas. A humanidade está à deriva porque está perdendo a profunda verdade de quem somos: irmãos nesta terra, vinculada pelo mesmo destino misterioso. Se a Europa quiser sobreviver com dignidade, deve deixar de ser uma Europa de burocratas e os bancos, a Europa do “General” obtuso. Ele deve ser capaz de transformar, converter, voltar a ser o que era no sonho de fundação: um lugar de paz e aceitação e acolhimento e de visões altas. Apenas assim, o mar Mediterrâneo, agora reduzido a um cemitério, voltará a ser o lugar de vida e do comércio.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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