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Pedalada fiscal vira base de crise política

Por capricho da história, as pedaladas matinais da presidente Dilma Rousseff nos arredores do Palácio da Alvorada, como parte de uma rigorosa dieta alimentar, foram confundidas no imaginário popular com a manobra contábil que acabaria servindo de justificativa para o seu impeachment.

Com o passar do tempo, porém, o que era uma discussão estritamente técnica e complexa, travada no Tribunal de Contas da União (TCU) com o Tesouro Nacional e o Banco Central, ganhou o campo jurídico-político e as ruas. E o apelido “pedaladas fiscais”, dado à prática da governo de atrasar o repasse de dinheiro aos bancos públicos e o FGTS para esconder a falimentar situação das contas públicas, passou a ser conhecido e debatido em todo o País.

Centro do furacão da crise política que paralisa a economia brasileira desde o ano passado, as pedaladas começaram a ser descobertas no início de 2014, quando a redução dos gastos de benefícios sociais chamou a atenção dos especialistas em Previdência. Eles não entendiam como as despesas com o abono salarial e seguro-desemprego caíam, mesmo num cenário em que a tendência natural das condições econômicas apontava para a direção contrária.

A desculpa oficial era sempre vaga. Arno Augustin, então secretário do Tesouro e principal mentor das pedaladas, insistia na tese de que a queda era um movimento natural. O problema só ganhou outra dimensão depois que reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em julho daquele ano, revelou a existência de uma estranha conta paralela de um banco privado com R$ 4 bilhões em créditos da União, que estavam relacionados a atrasos nos repasses aos bancos para o pagamento de benefícios sociais.

Foi a primeira vez que o termo pedaladas veio a público associado aos atrasos dos repasses que ajudavam a maquiar as contas a poucos meses das eleições presidenciais. Até então, a expressão era pouco conhecida e usada quando técnicos queriam explicar que despesas do ministérios, que deveriam ser pagas até o último dia do mês, tinham o desembolso transferido de fato para o primeiro dia do mês seguinte. Uma prática orçamentária antiga na Esplanada dos Ministérios, principalmente na virada de ano.

A descoberta da conta paralela desencadeou uma onda de reportagens que foram revelando o tamanho dos tentáculos das pedaladas. Não só na Caixa, mas também no Banco do Brasil, BNDES e FGTS. Como pela legislação brasileira, um banco publico não pode financiar o Tesouro, a base de sustentação para as investigações do TCU se consolidou a pedido do Ministério Público junto ao tribunal.

Conivência

“Que fique bem claro que, inicialmente, se omitiram não só o mercado financeiro, como também os órgãos de controle, público e de atividades profissionais. Mas isso nunca autorizaria o governo a prosseguir e se aprofundar nas práticas irregulares e depois ilegais”, afirma José Roberto Afonso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas.

Responsável por apontar muitas das manobras feitas pela equipe de Arno, Afonso diz que não se surpreendeu com o tamanho do alcance das pedaladas. Ele lembra que desde 2009 os especialistas em política fiscal e a mídia já vinham denunciando as práticas fiscais indevidas, como o uso de receitas extraordinárias, empréstimos fora do Orçamento e despesas postergadas. Os próprios técnicos do Tesouro alertaram em um movimento de rebelião interna, sufocado por Augustin.

Antes de o TCU abrir as diligências para investigação, os fiscais do BC detectaram o problema na Caixa, no final de 2013. Mantida em sigilo, a fiscalização cobrou providências da direção do banco estatal, que por temor de punições da autoridade reguladora, pediu uma câmara de arbitragem à Advocacia-Geral da União (AGU) com o Tesouro. Por pressão do BC, que também ficou em situação desconfortável por não ter feito os registros corretos, as pedaladas começaram a ser corrigidas a partir de agosto de 2014.

A partir daí, e até a condenação das pedaladas pelo plenário do TCU, em abril do ano passado, todos os esforços da defesa da União, para sustentar a tese de que a prática era normal e já havia sido feita pelo governo FHC, não prosperaram. Com o julgamento, a oposição imediatamente começou a pedir o impeachment da presidente pelo crime de responsabilidade fiscal.

Quitação

“Jamais imaginei que uma lei tão estuprada fosse gerar o processo de derrubada de um presidente”, diz Fernando Montero, economista-chefe da corretora Tullett Prebon, argentino naturalizado brasileiro que acompanha há mais de 15 anos as contas públicas. “Uma brecha no atraso dos repasses foi transformada em verdadeira escala industrial em 2014 para a presidente ganhar a eleição”, avalia. A prova disso é que, ao fim de 2015, por determinação do TCU, o Tesouro finalmente quitou R$ 72,4 bilhões das pedaladas que ainda estavam atrasadas. A principal consequência: rombo histórico de R$ 115 bilhões nas contas do governo.
Na etapa de comprovação das pedaladas, coube ao auditor do TCU Antonio Carlos D´Ávila, que conduziu a inspeção, o papel de protagonista ao conseguir elaborar um relatório técnico de grande consistência que serviu de base no julgamento. Ex-funcionário do BC e, portanto, com grande conhecimento sobre o tema, foi apontado com o “caçador” das pedaladas.

Os investigados, entre eles servidores de carreira do Tesouro que podem ser responsabilizados em julgamento que ainda não terminou, vêm a ação da corte de outra forma: a equipe do TCU quando foi colher provas, na verdade, já teria chegado pronta para a condenação por razões políticas. A principal queixa é de que a corte passou a dar uma interpretação nova, criminalizado a prática de imediato, sem esperar o prazo de ajustes.

Autor do pedido de impeachment, o jurista Miguel Reale concentrou sua argumentação na defesa da tese do governo de que as pedaladas fiscais eram praticadas e aceitas em gestões anteriores: “Dizer que ocorria antes é mentira”. Na linha de frente da defesa, o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, sustentou até o fim que não houve operação de crédito nas pedaladas. Ele centrou a argumentação na tese de “golpe” e de que não havia ato de Dilma com as pedaladas. O processo teria começado viciado com uma “chantagem” do presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Lição

Consultor legislativo do Senado, Marcos Mendes diz que as pedaladas estão no centro da depressão econômica atual. “Pedaladas é um apelido engraçado, mas não é o correto. O nome certo é fraude fiscal”, diz. José Roberto Afonso enfatiza que Congresso precisa aprovar novas leis para “tirar lições”. Ele recomenda a complementação da regulamentação da Lei de Responsabilidade Fiscal e o endurecimento das regras de controle interno e externo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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