Estadão

Ópera baseada em Machado de Assis é destaque de festival no Espírito Santo

Manoel de Barros ensina que, para apalpar as intimidades do mundo, é preciso saber algumas coisas. Cabe um mundo em cada lição do poeta. Mas há entre eles dois que pegam firme em sua didática da invenção. São os que surgem do ensinamento de que "o esplendor da manhã não se abre com faca", e de que "desaprender oito horas por dia ensina os princípios".

Desaprender é preciso para a ópera brasileira. E ela tem feito um bom trabalho. O poeta perdoe, por favor, o salto atravessado da poesia para o mundo das coisas. Mas a pandemia abriu caminho, olhem só, para um sopapo nas temporadas. Entre tantos elementos a serem considerados, a ênfase para a criação. Quando o ano acabar, será com uma marca inédita: catorze novas óperas brasileiras foram estreadas, com o perdão da redundância necessária pois inédita. Delas, treze frutos de encomendas.

O desaprender aqui tem a ver com algumas ideias arraigadas, a de que o público rejeita o novo e que, por isso, sobrevivência significa preservar o cânone. O cânone está lá, sempre estará, e nunca será ameaçado, está tudo bem. Mas entender que o papel de um teatro de ópera é repensar o gênero não apenas por releituras, mas também pelo investimento no novo, incerto que ele possa ser, é uma novidade.

Machado de Assis escreveu em 1865 no Diário do Rio de Janeiro que é a sorte de toda instituição humana trazer em si o "gérmen de sua destruição". E alguns tipos de germes, sabia ele, sabemos nós, se prolifera muito rapidamente no mofo. Olhar para o novo não é apenas enfileirar quantidades, mas refletir se na criação não há também uma nova forma de colaboração nos teatros de óperas, novas relações a serem construídas.

Os projetos desenvolvidos pela diretora Livia Sabag e o maestro Gabriel Rhein-Schirato vêm mostrando que sim. Sabag tem sido clara na defesa de uma nova forma de trabalho para a ópera brasileira, em múltiplos sentidos. Como encenadora, disse em entrevista recente, sempre sentiu uma fragilidade nas práticas dos teatros de ópera. "Há uma hierarquia que enfraquece o processo, quer dizer, o maestro e o diretor determinam uma interpretação e, entre os outros profissionais envolvidos, sobra pouca chance de contribuir para o todo do espetáculo."

Ela continua: "É um processo que funciona há muito tempo, mas que engessa, enfraquece o trabalho em termos de possibilidades de comunicação; não permite trocas, construção conjunta". E aí entra a aposta na criação. "Obra novas, para além da importância fundamental da abertura de espaço para a criação, permitem que todos se tornem criadores. Isso é muito saudável para o universo da ópera." Dá para colocar de outra forma: em um meio marcado por certezas e convenções cuja origem já nem sabemos qual é, multiplicidade de vozes pode significar ampliação de significados, tanto os inerentes à criação quanto os relacionados à potência social que ela carrega.

Não é algo que se imponha. E um objetivo a ser cercado de diferentes lados. No ano passado, Sabag e Rhein-Schirato idealizaram um ateliê de dramaturgia no Palácio das Artes de Belo Horizonte, com libretistas e compositores discutindo o dramaturgismo, a ideia de que uma obra, uma programação ou uma concepção cênica nascem não do acaso ou de questões prosaicas, mas de um conceito a ser discutido por vários atores.

Já em 2022, uniram-se ao compositor Leonardo Martinelli na criação de O Canto do Cisne, baseada em Chekov e estreada no Theatro São Pedro. E, no início de novembro, estrearam no Sesc Glória, em Vitória, o ciclo de canções O tempo e o mar, de Marcus Siqueira, e a ópera A procura da flor, de André Mehmari. O espetáculo abriu o Festival de Música Erudita do Espírito Santo que, dirigido por Tarcisio Santório e Natercia Lopes, ganhou ainda mais relevância no cenário ao apostar na experimentação.

<b>Sobre o tempo</b>

Em sua décima edição, o festival escolheu como tema a relação do ser humano com o tempo, a guiar toda a programação, dos concertos e recitais (que unem compositores e compositoras, brasileiros, latino-americanos, europeus, em sua maior parte dos séculos 20 e 21), às ações nas ruas, como as instalações artísticas urbanas que resultaram de ateliês sobre instalação sonora, arte-espaço e performance.

Sobre o tempo construiu-se também o espetáculo de abertura, que uniu o ciclo de Siqueira e a obra de Mehmari, encomendados pelo festival. O primeiro foi escrito a partir de texto original do poeta Geraldo Carneiro, que, para a segunda, criou libreto adaptado do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Sabag assinou a encenação, Rhein-Schirato, a interpretação musical. E as obras nasceram justamente do diálogo entre artistas que vêm trabalhando em conjunto.

Eliane Coelho, que já protagonizara O Canto do Cisne, cantou O Tempo e o Mar. Mehmari foi responsável, no ano passado, por uma das obras criadas no ateliê que teve orientação justamente de Carneiro. Se fosse, poderíamos chamá-la de companhia. Não é, mas, de maneira fluida, sem amarras, é como se fosse. Todos, de qualquer forma, cantores, maestro, equipe criativa, participaram de diferentes etapas do trabalho, a começar pela criação da obra.

O Tempo e o Mar começa com uma provocação. O tempo é definição do presente. Como tal, precisa ser "desinventado". O tempo é mar tecido como teia. Aprisiona aquilo que é livre por natureza. Pois, assim como é onipresente, o tempo é também opressor. E nele, invisível, é onde pode pairar a palavra impronunciável.

Carneiro é sábio com as palavras, sempre precisas. Mas sábio também porque não a aprisiona; olha para o mar, sim, mas principalmente para "a nau e a ideia de seu cais". Há espaço na construção dessa ideia, feita de não-ditos tão poéticos. E é nesse espaço que Marcus Siqueira constrói sua partitura. O começo de tudo, a relação entre texto e música, não é um fim em si mesmo. A correspondência entre palavra e sons existe, mas não se faz de reforço ou de negativa de um sentido. A poesia inspira, e a música a sente ao buscar caminhos que são só seus. O trabalho do compositor com timbres é de uma riqueza arrebatadora. Mas nunca um efeito, nunca um recurso. Cada instrumento reivindica um instante de protagonismo. É como se rasgasse, o termo é bem esse, a teia em favor do indivíduo. Em favor do mar.

Em uma obra na qual nada é óbvio, ter Eliane Coelho como intérprete é necessário. Pelo domínio técnico, nunca um fim em si mesmo. Por uma assimilação de texto e música que nunca os reduz a um único sentido. Pela capacidade de ousar na exploração dos coloridos da voz. E pelo sabor com que entende cada palavra, o canto marcado pelo movimento em cena, o gestual dos bailarinos, a compreensão da música.

Em seguida, A Procura da Flor, de André Mehmari. Esaú e Jacó narra a história desses dois irmãos tão diferentes, que representam um Brasil conservador e um Brasil liberal, mas se unem naquilo que é indistinto na paixão pela moça Flora. Há uma crítica social e política no romance de Machado de Assis – a diferença, no Brasil de então, era uma forma de disfarçar a manutenção dos vícios do Brasil de então. Na poesia de Carneiro e Mehmari, a ironia não desaparece, mas vai também em outras direções.

O libreto tem como foco a história de amor – ou a tentativa de um amor almejada pelos irmãos. A paixão se dá sempre em trio. No centro da ópera, Flora e os irmãos conversam. Cada um a seu tempo. Mas libreto e música, em vez de dois duetos, constroem um outro tipo de dueto, a três. É em sutilezas como essa que o livro se torna ópera – e ópera de uma fluência narrativa empolgante, em que a poesia reinventa a prosa naquilo que Carneiro considera essencial; e na qual Mehmari não escreve uma só nota a mais. Sua música é teatro em estado puro, seja no que faz a orquestra, seja no que constrói para as vozes, um canto poético, mas fluente, a serviço do drama.

Uma revelação a Flora de Isabella Lucchi, voz de desconcertantes coloridos escuros, em todos os seus pedaços, que ela articula com naturalidade e frescor, de um canto a outro, dominando o palco. Daniel Umbelino e Johnny França, os irmãos, usam seus timbres para marcar aquilo que possuem de diferente, nas brigas como no lirismo que ganha cores tão pessoais em suas interpretações.

Luciana Bueno e Savio Sperandio, como Natividade e o Caboclo, são mestres na cena e na voz, assim como a narradora de Silvia Klein. A passagem em que Natercia Lopes canta Natividade, resumindo com ironia o contexto político (Mehmari mais uma vez impressionante, evocando a Marcelina de Mozart; Rhein-Schirato sempre hábil em obter da orquestra, a Sinfônica do Espírito Santo, o envolvimento em partitura tão multifacetada), é terreno da homenagem.

Livia Sabag trabalha com os mesmos e simples elementos cenográficos (criados por Colette Dantas) tanto em O Tempo e o Mar quanto em A Procura da Flor. Na primeira, há austeridade, na segunda, movimento. É uma transformação nada banal. E que abre espaço para que auras distintas se construam, também pela atuação dos cantores, por exemplo, mas não só: imaginado por Fabio Namatame, o vestido de Flora que, na cena do trieto, paira sobre o palco, reforçando a onipresença da moça e envolvendo os irmãos, é uma construção dramatúrgica e visual tocante, realizada com sensibilidade por ele e pela luz de Fabio Retti. É como se a personagem se transformasse em cenário. De novo, uma transformação nada banal. E de uma simplicidade que desconcerta (o verbo merece mesmo aparecer de novo).

Para não deixar o poeta tanto tempo sozinho, nem sempre é preciso ter facas para abrir espaço por meio das intimidades do mundo. Melhor ainda é quando novos caminhos se fazem de nuances. Para que eles possam ser duradores e não intervenções pontuais. Ou, pelo menos, para que fique claro: é possível que seja assim.

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