Estadão

Projeto Cordillera Azul: dúvidas sobre créditos de carbono no Peru

O Parque Nacional Cordillera Azul, no flanco oriental dos Andes peruanos, abrange uma extensão da floresta amazônica, montanhas e cachoeiras em um grande território, tão precioso que dezenas de milhões de dólares em créditos de carbono já foram vendidos em um programa que, segundo apoiadores, protegeria as árvores do local.

Mas uma análise de especialistas independentes, juntamente com a atuação jornalística da <i>Associated Press</i>, colocou em questão se o projeto vem cumprindo a promessa de contrabalancear as emissões de petrolíferas como Shell e TotalEnergies, entre outras. De acordo com a análise por satélite, a perda de árvores mais do que dobrou.

Os especialistas dizem que o projeto Cordillera Azul tinha falhas desde o início: foram gerados créditos de carbono em excesso e concedidos benefícios exagerados, que permitiram que a organização sem fins lucrativos que administra o parque para o governo peruano ganhasse mais dinheiro – mesmo com a diminuição da cobertura florestal.

Os defensores do projeto contestam que os benefícios tenham sido inflacionados. Eles dizem que a perda de árvores foi praticamente toda por causas naturais, mesmo diante das análises de satélite que mostram que ela está concentrada nos limites norte e oeste do parque, perto de grandes centros populacionais e principalmente ao longo de rios. Esses lugares são mais fáceis de alcançar e fazer a derrubada ilegal do que qualquer outro ponto da paisagem quase intocada.

"Está claro que algo deu errado neste projeto", diz Edward Mitchard, especialista em desmatamento e créditos de carbono da Escola de Geociências da Universidade de Edimburgo.

Os céticos em relação aos programas de crédito de carbono para proteção florestal observam que o mercado é essencialmente autorregulado, e é fácil para os participantes exageraram os benefícios de um determinado projeto. Feitos de forma correta, eles deveriam permitir que as empresas equilibrassem suas emissões de carbono, evitando que elas acontecessem em um determinado lugar, como uma floresta tropical, enquanto emitem um volume considerável em outro. A demanda por esses projetos está aumentando à medida que as empresas sofrem pressão para se tornarem neutras em carbono, e um banco de dados mostra que o número de programas praticamente dobrou nos últimos dois anos.

Há bastante tempo as florestas do Peru estão sendo pressionadas pela migração de pessoas que vão abrir novas áreas de terra para agricultura. Em Cordillera Azul, o programa de créditos de carbono gera dinheiro que paga pelas patrulhas florestais e pela educação das comunidades locais para impedir o desmatamento, que libera quantidades enormes de dióxido de carbono e contribui para as mudanças climáticas. Os documentos mostram que mais de 28 milhões de créditos do projeto Cordillera Azul foram vendidos, suficientes para compensar 28 milhões de toneladas de dióxido de carbono, angariando milhões de dólares. Os indígenas Kichwa, porém, reclamam que o processo não reconheceu seu direito ancestral à terra.

Documentos de fundação dizem que o projeto lançado em 2008, que está entre os maiores empreendimentos desse tipo no mundo, visava a evitar "todo o desmatamento" no parque.

Mas a empresa de Mitchard, Space Intelligence, verificou que a perda da cobertura florestal saiu de uma média de 262 hectares por ano nos cinco anos antes do lançamento do projeto, para uma média de 572 hectares por ano entre 2019 e 2021, o último ano em que há dados disponíveis. A Space Intelligente é uma empresa com fins lucrativos que realiza mapeamento por satélite, usado para conferir os créditos de carbono.

Parte da perda de árvores no parque pode ser vista em imagens de satélite capturadas em 2010 e 2019 e fornecidas à AP pela Planet, uma empresa que faz esse tipo de imagem para governos, empresas e pesquisadores.

O CIMA, a sigla em espanhol da entidade independente sem fins lucrativos criada para administrar o parque, diz que a perda de árvores foi causada por fenômenos naturais como deslizamentos de terra, e não atividades como extração de madeira, cultivo ou mineração.

A inspeção dos dados de satélite mostra de fato muitos deslizamentos de terra, mas o desmatamento é uma das principais causas dos deslizamentos, porque as raízes das árvores ajudam a manter as encostas íngremes no lugar. A modelagem acadêmica demonstrou que os deslizamentos de terra acontecem com frequência até 13 vezes maior em áreas desmatadas. É impossível saber o que causou os deslizamentos de terra em Cordillera Azul sem inspeções no local, mas a perda de cobertura florestal dentro do raio de 1 quilômetro dos limites do parque e dos rios, as áreas mais acessíveis e vulneráveis à exploração madeireira, foi aproximadamente o dobro da que aconteceu no restante do parque, segundo a Space Intelligence. Mais de um terço do total da perda de árvores mapeada no gigantesco território do parque se concentrou nessas estreitas faixas.

Isso "sugere que tenha havido perturbação humana na floresta, tornando esses deslizamentos de terra mais prováveis", diz Mitchard, embora observe que as causas naturais não podem ser descartadas.

Ele também comentou que os dados mostram que a perda anual de cobertura florestal dentro do parque desde 2008 aumentou quase na mesma proporção da perda de árvores fora do parque, sugerindo que o projeto de créditos de carbono tenha conferido pouca proteção à região de Cordillera Azul. Os dados dão a entender que "as mesmas pressões humanas" operam dentro e fora do parque, segundo o especialista.

Cada crédito de carbono representa uma tonelada de CO2 que deixa de entrar na atmosfera pela proteção às árvores. Teoricamente, eles só deveriam ser emitidos quando uma floresta estiver em risco – e Cordillera Azul estava legalmente protegida por decreto presidencial desde 2001. Mas documentos oficiais mostram que o CIMA fez pressão em prol do programa, argumentando que ele seria necessário para financiar a fiscalização e a educação, já que a lei sozinha não iria salvar as florestas da agricultura de queimada, da exploração madeireira e da mineração. Eles também mencionam o programa como uma fonte mais confiável de financiamento para o parque do que depender de doações.

"A existência do título de parque nacional em um país como o Peru não é suficiente para impedir o desmatamento", disse Gonzalo Varillas, diretor-executivo do CIMA, em sua resposta por e-mail às perguntas da AP. Ele também disse que a venda dos créditos resultou em recursos suficientes para cobrir 90% dos custos operacionais do parque, compensando a dificuldade de obter doações internacionais. O governo do Peru começou a entregar a administração de alguns parques às organizações sem fins lucrativos com base na teoria de que elas teriam melhores condições de atrair financiamento estrangeiro.

Steve Zwick, porta-voz da organização sem fins lucrativos Verra, certificadora de projetos de carbono florestal como esse, defendeu o programa como uma "tábua de salvação" para o parque. Sem a receita dos créditos de carbono, o CIMA se tornaria dependente de financiadores pouco confiáveis, diz. A economia de carbono, portanto, teria sido "cristalina".

Mas os especialistas dizem que o projeto exagerou na projeção de benefícios desde o começo.

Em 2008, o CIMA declarou que, sem o programa de créditos de carbono, quase 29 milhões de toneladas de CO2 seriam liberadas pelo desmatamento ilegal no parque ao longo da década seguinte. Para calcular essas "emissões evitadas", segundo o padrão das diretrizes do setor, o CIMA comparou o projeto a uma área de referência, para prever o que aconteceria sem a proteção.

Simon Counsell, que avalia projetos de crédito de carbono florestal há aproximadamente 15 anos, analisou as áreas selecionadas pelo CIMA para a organização Friends of the Earth na Holanda. Ele descobriu que a área de referência adotada pelo CIMA aumentava artificialmente os números ao exagerar na amostragem de vales aluviais e várzeas, que são mais atraentes para os agricultores, e, portanto, mais vulneráveis ao desmatamento, em detrimento do terreno mais acidentado do parque.

Quanto maior o número de emissões evitadas, mais créditos poderiam ser vendidos, mesmo que os supostos benefícios tenham sido exagerados, como verificou Counsell.

Segundo ele, os números do CIMA também foram distorcidos por estimativas questionáveis de crescimento populacional na área de referência, outro dado usado para estimar as emissões evitadas, uma vez que mais pessoas em geral significam mais destruição da floresta.

No distrito de Pampa Hermosa, por exemplo, o CIMA usou estimativas de que a população cresceria mais de 700% na década seguinte ao lançamento do programa. Mas os números do próprio parque mostram que a população crescera em média apenas 2,2% ao ano entre 1993 e 2002.

A Compensate, uma empresa que avalia e vende créditos de carbono, rejeitou Cordillera Azul para seu portfólio em 2020. Sua avaliação, que foi compartilhada com a <i>AP</i>, também chamou a atenção para as estimativas de crescimento populacional e desmatamento. Esta foi descrita como "uma maneira de inflacionar" as emissões evitadas pelo programa.

Will Lock, especialista em mercado voluntário de carbono e conservação da Amazônia peruana na Escola de Estudos Globais da Universidade de Sussex, diz que as previsões empregaram uma "abordagem altamente exagerada de pior cenário", que resultou em uma "preocupante tendência de superestimar as ameaças" e maximizar as alegações de economia de carbono.

Zwick, da Verra, diz que a região de referência foi escolhida em processos com revisão por pares, os melhores disponíveis à época, e certas áreas foram excluídas. Ele alega que as pessoas podem cultivar encostas íngremes, e que a topografia foi levada em consideração na avaliação. As questões apontadas na época por auditores independentes teriam sido tratadas, segundo ele, e os dados populacionais eram os melhores então disponíveis.

A Verra declarou recentemente que trará uma nova metodologia de créditos de carbono florestal até 2025.

O projeto foi executado com a "mais alta qualidade", segundo Varillas, do CIMA. Ele diz que parte do desmatamento observado se deve a causas naturais, e que as estimativas populacionais foram baseadas em modelagem robusta.

As maiores compradoras do projeto, Shell e TotalEnergies, defendem sua participação.

Um representante da TotalEnergies alegou por e-mail que a comparação entre a perda de árvores antes e depois do projeto daria a impressão enganosa de fracasso, uma vez que o desmatamento não pode ser interrompido instantaneamente. Ainda segundo o representante, que não permitiu que seu nome fosse divulgado, a empresa só investe em projetos de carbono que atendam "padrões internacionais e metodologias de alta qualidade".

Um representante da Shell também mencionou a proteção ao parque como um dos benefícios das compras de créditos, e disse que, sem o programa, teria ocorrido "desmatamento catastrófico". O representante, porém, que também não permitiu que seu nome fosse usado, declarou que a Shell realizará uma análise adicional antes de novas compras.

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