Estadão

São Paulo recebe a maior mostra de filmes de Tim Burton

Há um clichê biográfico em torno de Tim Burton. Garoto solitário, criado nos arredores de Hollywood, carente de amor e dotado de imaginação fértil, preenchia as (muitas) horas vagas vendo filmes B e lendo histórias fantásticas e contos de fadas aterradores. Um pequeno nerd, voltado para si mesmo e suas obsessões. Daí que, tornado adulto, só poderia mesmo fazer os filmes que conhecemos.

Como nem todo clichê é mentiroso, apenas limitativo, esta parece ser mesmo a matriz de formação de um artista incomum, homenageado com a mostra O Cinema de Tim Burton, no Centro Cultural Banco do Brasil, de 25 de janeiro a 26 de fevereiro.

A retrospectiva é ampla. Traz nada menos que 23 títulos dirigidos por Burton, do primeiro curta, Vincent (1982), ao remake de Dumbo (2019), passando, claro, por seus grandes sucessos como Edward Mãos de Tesoura, Batman: o Retorno, Ed Wood e A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, entre outros.

Também estão no cardápio dezoito longas-metragens fundamentais para a trajetória cinematográfica do diretor, segundo ele próprio. Filmes como A Pequena Loja de Horrores (1960) e O Corvo (1963), de Roger Corman, Plano 9 do Espaço Sideral (1959), de Ed Wood, além do clássico O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Norbert Wiene, e do antológico A Noiva de Frankenstein (1935), de James Whale.

Haverá também outras atividades ao longo do mês dedicado à mostra, como debates, masterclasses com especialistas e cosplay com gente se fantasiando como os personagens do artista.

Hoje, Tim Burton é uma grife, um artista consagrado – recebeu em 2007 um Leão de Ouro do Festival de Veneza pelo conjunto da obra. E São Paulo recebeu duas exposições em sua homenagem, no MIS (2016) e na Oca (2022). Mas, no começo, não havia muita gente que o levasse a sério. Parecia apenas um menino maluquinho, de talento inegável, porém com gosto duvidoso em suas escolhas e um tanto infantil em sua temática de eleição.

<b>Visão de mundo</b>

Com o tempo, seu talento foi se impondo, até ser considerado um "autor" por parte da crítica mais exigente. Quer dizer, alguém com visão de mundo particular, estilo de expressão único e reconhecível, artista a ser levado em conta mesmo em seus momentos menos felizes. Aliás, para os adeptos da teoria do autor, os que merecem essa denominação nobre não apresentam momentos menores – o público e a crítica convencional é que ainda não conseguiram enxergar o óbvio e valorizá-lo.

Deixando o fanatismo crítico de lado, deve-se reconhecer que a trajetória de Burton é mesmo coerente, marcada por escolhas pessoais e expressa sua visão de mundo. Trabalha com suas ideias fixas, por assim dizer, lembrando que, para Nelson Rodrigues, são as obsessões que garantem consistência a uma personalidade.

Elas estão presentes em Burton desde o primeiro curta, Vincent (1982), em que, em meros seis minutos, coloca em cena duas de suas referências principais: o escritor Edgar Allan Poe e o ator Vincent Price. O próprio Price faz a narração em off, e em versos. Trata-se da história tétrica de um garoto chamado Vincent Malloy, atormentado por ideias terríveis e recorrentes.

Este foi o começo de uma obra marcada pela sensação de ausência, da falta, do sentimento do fantástico e da estranheza da experiência humana.

<b>Burton e Depp</b>

Por exemplo, em Edward Mãos de Tesoura (1990) – para muitos seu filme mais bem realizado. Início de sua colaboração com Johnny Depp (fizeram oito filmes juntos), traz a marca da incompletude. Edward é um ser criado por um inventor que falece antes de terminar sua obra. Edward ficou sem as mãos, substituídas por lâminas que tanto podem ser ameaçadoras como instrumentos de beleza, cortando cabelos e podando plantas com rara destreza. No entanto, a marca fundamental desse ser incompleto não poderia deixar de ser a solidão.

Em sua preferência pelos outsiders, Burton se interessa por um colega do passado, Ed Wood, e o transforma em seu ídolo. No entanto, Wood, em seu tempo, recebe o apodo de "pior cineasta do mundo". Esse ser também solitário, discriminado e perseguido traz aquela lição surrada e sempre verdadeira, a de que não se deve renunciar aos sonhos, mesmo que ninguém acredite neles. Em seu caso, é a produção de filmes, mesmo em precária situação.

De uma forma ou de outra, nos filmes de Burton encontraremos quase sempre essa opção pelos diferentes, pelos mais fracos e perseguidos, simpatia que é uma espécie de luz a equilibrar a vocação soturna do seu cinema. Um cinema estranho, vale dizer, que nos tira da zona de conforto, nos inspira e incomoda. Aliás, como um dia escreveu Freud, a estranheza pode ser um vigoroso estímulo para a nossa imaginação.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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