Mundo das Palavras

Talento sob tortura

Relatos mais extensos de torturas a presos políticos no Brasil circularam desde os anos imediatamente posteriores ao Golpe Militar de 1964 até a redemocratização do país na década de 1980, sob menor ou maior vigilância do Estado policial.


 Um dos primeiros livros publicados, naquele período com relatos deste tipo, foi o de Márcio Moreira Alves. Impresso em 1966 recebeu o título de “Tortura e torturados”. 


 


Alguns destes relatos, quando a vigilância crescia, só puderam circular no Exterior. Os raros volumes que chegavam ao Brasil eram lidos com angústia e medo porque a posse de um deles, flagrada pela Delegacia de Ordem Política e Social, se transformava numa prova de contestação ao regime, nos inquéritos instaurados pela Justiça Militar.   


 


Depois de duas décadas no poder, os militares encontraram maiores dificuldades para continuar estendendo o ciclo de governos mantidos por eles, desde 1964, diante da reação da sociedade civil, cada vez mais organizada. Foi quando estes relatos se tornaram mais abundantes e ajudaram a apressar o fim da ditadura. Dezenas de livros revelaram fatos espantosos, como choques elétricos, afogamentos, queimaduras com cigarros, e outros tipos de violências impostas a presos indefesos nos porões dos órgãos de manutenção do regime autoritário.


 


Naquela conjuntura, a elaboração de tais livros não poderia ser conduzida por anseios estilísticos. Mas, algo mais importante movia seus autores: a disposição para jogar luz sobre o que acontecia no país sem que a sua opinião pública soubesse, devido ao encobrimento imposto através da censura à imprensa.


 


Ainda assim, dois dos autores daqueles relatos logo se distinguiram pela qualidade dos seus textos. Ambos, jornalistas cujos talentos já eram conhecidos no ambiente profissional deles.


 


O primeiro foi Fernando Gabeira, ex-jornalista do, então, criativo e brilhante Jornal do Brasil. Ele chegou a ser baleado e torturado numa cama de hospital. Com uma longa entrevista sobre sua prisão concedida ao jornal Pasquim, Gabeira se viu lançado na carreira de escritor bem-sucedido. O segundo se constituiu num caso ainda mais interessante de conquista de um ex-preso político pela Literatura. Flávio Tavares estava sendo massacrado. Para evitar sua morte, ele foi incluído por seus companheiros na lista de prisioneiros que os militares deviam libertar em troca do embaixador dos Estados Unidos, seqüestrado por organizações clandestinas de esquerda.


 


Durante 30 anos, Flávio evitou relembrar sua prisão. Até que, em 1999, resolveu publicar o livro “Memórias do Esquecimento – Os Segredos dos Porões da Ditadura”. Com este relato, no ano seguinte, ele recebeu o maior galardão literário do Brasil, o Prêmio Jabuti. Seu livro foi comparado à “Memória do Cárcere”, de Graciliano Ramos, pelo Prêmio Nobel de Literatura José Saramago. E impressionou o escritor argentino Ernesto Sabato. Segundo ele, Flávio revelou “imagens de um inferno apenas entrevisto por Dante, Dostoievsky e Rimbaud”.


 


O melhor, porém, estava por vir. Com aquele livro, Flávio afinou o instrumental da sua criação literária. Mais tarde, ele criou uma obra prima do Memorialismo Brasileiro, o livro “O dia em que Getúlio matou Allende”.


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP


            

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