Mundo das Palavras

Dia de aniversário

Dia de aniversário pode ser boa ocasião para se listar tudo aquilo que nunca conseguimos fazer. E aquilo que fizemos, sem entender bem por qual motivo.  Aniversariante há poucos dias, creio que possa convidar os leitores desta coluna a compartilharem da produção da minha listagem particular, afinal há quase oito anos me dirijo a vocês. E é junto a quem nos conhece que sentimos vontade de realizar algo assim.  Então, vamos lá.
 
Nunca aprendi a dançar. E por isto paguei um preço elevado, o de ver minhas parceiras desgostosas por eu não saber atender o desejo delas de se deixarem levar pelas músicas enroscadas em mim, como os dois dançarinos de tango do bibelôque minha filha Rafaela, fotógrafa, encontrou numa vitrine de Buenos Aires e eu mostro aqui. Talvez tenha me odiado, às vezes, por não ter esta habilidade. Mas não estou muito certo disto, não. 
 
Nunca fiquei bêbado, numa festa dançante ou em outro evento semelhante, a ponto de não saber o que estava fazendo, de adormecer fora de casa, num lugar qualquer. Por medo. Um medo permanente de perder a consciência. Como se jamais pudesse confiar no meu entorno, fora da minha cama. Como se – sem consciência -, ficasse desprotegido frente a alguma ameaça que jamais identifiquei.   
 
Nunca aprendi a dirigir qualquer veículo, além da bicicleta da infância. A certa altura, tínhamos dois carros na garagem por causa dos filhos já adultos que estudavam em faculdades diferentes. Eu continuei, impávido, me servindo dos ônibus. Por vezes, é verdade, com certo incômodo. Quando, por exemplo, carregava equipamentos que teria de usar em minhas aulas. Ou quando, no retorno, encontrava alunos dentro dos transportes coletivos e tinha a certeza de que eles me olhavam como um fracassado na vida. Neste caso, o incômodo não era exatamente pelo julgamento deles porque sou de uma geração que aprendeu a se lixar para aquilo que outros pensem de nós. Mas porque eles poderiam desanimar no empenho necessário para os estudos ao verem alguém que já tinha estudado por mais tempo, numa situação supostamente frustradora. E, claro, eu não queria prejudicá-los. 
 
Nunca assisti a uma partida de futebol em estádio. Há muitos anos, na fase áurea da carreira de Pelé, fui designado pela revista onde trabalhava para entrevistar um gringo que estava no Estádio do Morumbiporque queria ver o Rei do Futebol jogando pelo Santos. Entrei no estádio, percebi, de passagem, o time se movimentando, em torno do grande craque, sempre, porém,concentrado no meu trabalho. Quando o conclui, sai logo dali, sem tomar conhecimento de qual era, então, o placar da partida.
 
Nunca apostei um único centavo na antiga Loteria Esportiva, tampouco nos atuais sorteios promovidos pela Caixa Econômica Federal. Já ouvi dizer que gente como eu é quem mais tem chance de se tornar milionário porque não consegue nem mesmo se apoiar, em sua eventual aposta, em qualquer raciocínio concatenado, estando deste modo apto a acompanhar a falta de lógica das premiações. Tudo bem. Ocorre que também não sei como se preenche os cartões com as apostas.
 
Em contrapartida, cultivei hábitos difíceis de explicar. Por exemplo, o de pensar horas infindáveis em pessoas que nunca seriam informadas disto. Mantendo-as dentro de mim como uma ideia, uma lembrança, uma esperança. Enfim, como algo essencial àquilo que nos Seminários religiosos onde estudei, era chamado de Mundo Interior.Verdadeiros entes fantasmagóricos. Possivelmente se dissolvessemà luz do Sol.
 
Pior ainda, me habituei a pensar horas a fio, num único gesto, numa única atitude, numa única palavra destas pessoas, cujo entendimento se impunha a mim como grande necessidade psicológica,criada pela ânsia de obter uma visão repentina e profunda delas.  
 
Tanto destrambelhamento foi me tornando assim como sou, arisco, pouco sociável, amante de silêncio e isolamento. Alguém sustentado em bases etéreas como notas das sonatas, concertos e sinfonias, criadas por artistas mortos há duzentos anos, aproximadamente, absorvidas com respeito místicodias inteirosna produção de textos. Muitas vezes, estranhando a mim próprio. Ao ferir quem não odeio. Ou, sei lá, por comover quem não conheço.
 

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