A dispersão dos usuários de drogas pelas ruas do centro de São Paulo nas últimas semanas dificulta a ação de entidades de assistência social, que precisam caçá-los pelos novos endereços da Cracolândia, como a Praça Marechal Deodoro, a Rua Helvetia e até na Mooca, na zona leste, para entregar marmitas e cobertores. Essas dificuldades se juntam às carências das pessoas em situação de rua, número que tem crescido ano a ano – situação ainda mais dramática com a chegada do frio.
Na madrugada de quarta-feira, 14, a reportagem percorreu o centro. Dezenas de pessoas em situação de rua recorreram a cobertores finos e curtos, muitas vezes úmidos, e tentaram dormir nas calçadas de inúmeros endereços da região central, principalmente no Pateo do Colégio, na região da Sé. Adriano Silva, de 38 anos, disse que não poderia levar seus pertences a um abrigo – a Prefeitura afirma ter aberto duas mil vagas extras. Ele tem uma barraca – doada por uma igreja – , duas camisetas e um moletom preto. "Como vou para o abrigo sem minhas coisas? Quando eu voltar, não tem mais nada", diz.
Essas barracas, moradias provisórias que se tornaram símbolos do aumento dos sem-teto em São Paulo, são o abrigo possível. Na calçada da Avenida Duque de Caxias, uma delas servia para quatro. Não ao mesmo tempo. Como não havia espaço, eles se revezavam, duas horas para cada um, mais ou menos. Ali, nenhum dos quatro diz usar crack, apenas álcool. "Rezo para não chover", diz o peruano Cristian Torres, há cinco anos no Brasil, que já foi preso por agressão doméstica. "Meu jeito de viver o frio é a cachaça", diz.
Nas tendas emergenciais montadas pela Prefeitura na Marechal Deodoro, um dos pontos de atendimento da Operação Baixas Temperaturas, o idoso Fabiano Duarte lamentou ter conseguido só um cobertor para enfrentar 7ºC. Ele ainda vai dividir a coberta com a mulher em uma maloca no Largo do Arouche.
Os funcionários, segundo ele, argumentam que era só um por pessoa, pois a demanda era muito grande. Procurada pela reportagem, a Prefeitura não comentou sobre os critérios de distribuição dos cobertores.
Além das cobertas, as tendas oferecem sopas, bebidas quentes e transporte para pernoite em centros de acolhida, além de vacinas contra covid-19 e gripe (influenza). São locais de passagem. Até o início da madrugada, 20 pessoas foram encaminhadas para os centros de acolhida.
Com um rombo enorme na bermuda jeans e tênis pretos maiores que seu número, Duarte não pediu cobertor pela segunda vez. Ele admite o uso de crack há muito tempo, mas não sabe mais a idade. Sabe sim que seu aniversário é em agosto. Os cabelos grisalhos, as rugas na testa, os dois dentes que restaram, a postura arqueada e as dores no joelho dão sinais de que ele já passou dos 60.
Usuários de drogas buscam apoio porque a assistência agora custa mais a chegar após uma operação policial na Praça Princesa Isabel, no dia 11, que dispersou o chamado fluxo de usuários de droga por vários pontos da cidade. Representantes da Missão Batista Cristolândia, entidade assistencial ligada às igrejas evangélicas, afirmam que interromperam as entregas de marmitas e cobertores por quatro dias porque não sabiam onde encontrar os dependentes químicos. Na sede, a entidade oferece alimentação, banho, corte de cabelo e uma vaga em um abrigo assistencial.
Conforme o Padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, as kombis distribuem marmitas à medida que encontram pessoas vulneráveis ao longo do trajeto. E são os usuários que indicam onde estão os outros. O <b>Estadão</b> acompanhou uma parte desse trabalho na madrugada de quarta.
Algumas pessoas na Rua Prates foram levados para a Casa de Oração do Povo da Rua, que permanece aberta desta segunda para que as pessoas possam dormir lá. Às 3h da manhã, o termômetro marcava 10ºC. "Não dá para ficar parado e esperar que as pessoas venham. Temos de passar da hostilidade para a hospitalidade", diz o padre.
Após operação na Princesa Isabel, a polícia prendeu ao menos nove acusados de tráficos de drogas e dispersou usuários por vários pontos da região central. Segundo a Prefeitura, a dispersão facilita o oferecimento de serviços de apoio e tratamento para os dependentes químicos.
Em um desses movimentos de dispersão, Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Junior, de 32 anos, foi baleado nos arredores da Princesa Isabel na quinta-feira, 12. Três policiais civis se apresentaram como autores de disparos. Uma perícia vai apurar se o tiro que causou a morte do homem saiu da arma de algum dos oficiais.
Representantes de entidades sociais reconhecem que a morte violenta traz prejuízos ao trabalho de campo, principalmente para a busca ativa dos usuários. "Os voluntários, principalmente os mais jovens, têm receio e preocupação. Não sabem como os usuários vão reagir", conta o pastor Hélbio Marques, coordenador das Cristolândias de São Paulo.
<b>Convivência com moradores de rua cria código de ética </b>
Espalhados pelo centro, os usuários também têm dificuldade para dividir espaços com quem já mora na rua. A situação mais delicada ocorre na Marechal Deodoro. Usuários relatam que algumas famílias preferiram se mudar para a Comunidade do Moinho, na região central, para evitar o contato das crianças com quem usa entorpecentes. "Na convivência, eles têm a diferença, mas acabam convivendo. Um ou outro rejeita porque (o novo ocupante daquela área) é viciado. Mas estão todos na miséria", diz Lancelotti.
Essas diferenças acontecem mesmo com um código de conduta dos usuários: não usar droga na frente das crianças. Uma gíria indica a presença de menores: "olha o anjo". Quem conta é a mulher trans e usuária de crack Paola Fernandes, de 29 anos, que vive nas ruas há quatro anos, dois deles na Cracolândia. "Quando eu uso, entro na barraca e ninguém me vê. A gente respeita quando tem família", diz Paola, que vive numa barraca embaixo do Minhocão.
Com a crise socioeconômica e a pandemia, aumentou o número de famílias sem-teto em São Paulo. Em 2019, 20% da população de rua dizia estar com algum parente – essa parcela subiu para 28,6%. Levantamento inicial da Prefeitura aponta que há mais de 500 pontos com concentração de crianças e adolescentes na capital.
Na falta de barraca, usuários também recorrem a cobertores e guarda-chuvas para evitar a visibilidade. Morador da Cracolândia há mais de 30 anos, Jailson Antonio de Oliveira conta que não usa crack na frente das crianças porque pensa em seus filhos. São três: o casal de gêmeos de 25 anos, e o caçula, de 23. Eles foram à Cracolândia, mas agora estão afastados. Por cinco anos, Oliveira trabalhou formalmente em um hotel do centro e diz que só usava cigarro e álcool. Foi aí que fez sua família. Mas o fim do casamento foi o empurrão para a recaída da qual não saiu mais. Agora, quer ser internado. "Quero voltar a ser o que eu era".
Carlos Bezerra Junior, secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, afirma que a Prefeitura desenvolve um censo específico para crianças e adolescentes nas ruas. Dados iniciais apontam 526 pontos de ocupação. Bezerra afirma que ainda não é possível estimar a quantidade de crianças nas ruas nem os locais de maior concentração. "A partir desse quadro é possível criar políticas públicas mais adequadas e de prevenção".
<b>Prefeitura e Estado dizem ampliar atendimento</b>
O Governo do Estado informou que acolheu 30 pessoas na noite de terça-feira, 17, no alojamento estruturado na Estação Pedro II do Metrô na primeira noite da ação Noites Solidárias. Foram 22 homens, quatro mulheres e quatro crianças acolhidos na Estação. Elas receberam colchões para passar a noite, kits de higiene, cobertores e refeições gratuitas entregues pelo Programa Bom Prato Móvel.
No decorrer desta semana, outros 500 cobertores e 2 mil sacos de dormir serão doados pelo Fundo Social de São Paulo serão enviados para a prefeitura de São Paulo, para atendimento previsto em dez tendas espalhadas por toda a capital.
Na terça, a Defesa Civil distribuiu 500 colchões, 354 cestas básicas, cerca de mil litros de água sanitária e 200 kits de higiene pessoal em quatro centros de acolhimento da cidade: Missão Belém – Vida Nova; SEFRAS – Associação Franciscana de Solidariedade; Pastoral do Povo da Rua e Missão Belém – Casa Guadalupe.
A Prefeitura desenvolve as ações da Operação Baixas Temperaturas para ampliar os serviços de atendimento e segurança alimentar da população em situação de rua. As medidas incluem a expansão de vagas na rede socioassistencial, ampliação dos recursos humanos – agentes sociais de equipes de saúde, distribuição de cobertores, sopas e bebidas quentes, além de disponibilizar transporte (ida e volta) para pernoite nos Centros de Acolhida. De acordo com a Prefeitura foram realizados 386 atendimentos e 280 encaminhamentos para abrigos.
Segundo o secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Carlos Bezerra Júnior, a Prefeitura está incrementando as equipes que fazem a abordagem no território, com diferenciação dos encaminhamentos. As famílias com crianças são encaminhadas prioritariamente para hotéis. "Criamos neste ano 1,5 mil vagas em hotéis para acolhimento. Entregaremos 320 vagas na próxima semana", afirmou ele ao Estadão. Para os dependentes químicos, a procura por tratamento cresceu 28% para os vários serviços, acrescenta o secretário.